Este solo parte da construção de um corpo. Um corpo-imagem, um corpo-ornamento, que pode conter em si ao mesmo tempo toda a força de um universo dantesco e a tranquilidade aparente de um paraíso arrasado pelo fogo depois de uma festa da espuma. Como se, à primeira vista, fosse possível criar um corpo que carregasse toda uma história e todo um universo simbólico em diálogo com um outro (mesmo) corpo nu.
Nesta performance as imagens oscilam entre arquétipos do belo divino e do aparentemente monstruoso, entre humano e bicho, entre linguagem e não linguagem, entre silêncio e ruído. Fala-se nesse vai e vem entre racional e irracional, cérebro e coração, programação e intuição. Género acéfalo com cabeça e coração, era o que eu queria construir, deixando as imagens que nos habitam passar no corpo até tentar chegar a algo mais cru e rugoso, mais terreno, talvez mais simples. Seja lá o que isso for. [É que me parece que nos tornámos demasiadamente bem educados e razoáveis, demasiadamente habituados a ser parafuso de máquina silenciosa em bolha catatonica, demasiadamente atarefados a fumar ópio televisivo, demasiadamente aconchegados numa cadeira de balanço a olhar para o espelho dos outros como a única salvação. Isso é decomposição lenta, é vida sem atracção, é insuficiência individual. É ser-se alicerce de plasticina, kumbaya desperdiçado. Apaga-se o desejo, o fosso necessário dos sonhos, o tesão, o êxtase, o riso, o grito e por aí fora.]
Mas depois pergunto-me: o que resta? Afinal o que resta quando se tenta deixar cair (sim talvez estar nisso a que chamamos despojamento), o que resta quando se deixa cair as coisas, o “como está passou bem?” amarelo, as armaduras de silicone, os ideais de bolso, os invólucros ?.. Não sei, há-de depender do caso e não existem verdades. Eu ainda não sei como se faz mas há uma frase que se repete na minha cabeça tout que je peut faire c ́est être là, tout que je peut donner c ́est ça, être là, assim, mesmo em francês. E o circo estará sempre montado. Bem haja. Para manter um corpo vivo há que mantê-lo numa rede de paradoxos.
O ponto de partida para a criação deste solo iniciou-se em sequência do convite dos – mente para uma apresentação no RITZ CLUB em Lisboa, cuja proposta lançada visava conceber um objecto performativo inspirado numa ideia de glória, ascensão, sacralização, passado, jogo e imortalidade, com duração limite de cerca de oito minutos.