Na realidade a vida não é uma coisa limpa. Reconhecer isso seria meio caminho andado para a tornar menos suja, ou seja, para a possibilidade de nos tornarmos mais felizes.
Ana Cristina Leonardo
Em O Limpo e o Sujo há corpos educados e há corpos deseducados.
Há sobretudo um alegre chafurdar na fusão entre estas duas espécies de corpos, e na profusão que essa fusão produz. Fusão que parece fazer surgir um lugar particular, o lugar favorito, o lugar preciso (lugar necessário e lugar de precisão).
[EMPURRAR, INSISTIR, ARRANCAR, ESPREMER, EXPURGAR, EXPELIR, INSISTIR, ESTICAR, EXPOR, INSISTIR, ABRIR, APERTAR, PRESSIONAR, ESMIGALHAR, ABRIR, RETER, ESFREGAR, INSISTIR, APONTAR, VARRER, ABRIR].
Acho que a única vida é mesmo a do Manuseamento dos Materiais do Mundo (e nós seres humanos também somos mundo). Manusear objectos, imagens, palavras, movimentos, intensidades. Manusear espaços, tempos, afectos, desejos, vibrações. Manusear fantasmas. Limparmo-nos nesse manuseio. Sujarmo-nos nesse manuseio. Manuseio em associações várias, em intersecções e acoplagens, manuseio activado em acções, corporizações, encarnações (atravessadas em espaços e tempos). A vida de uma linguagem outra. Linguagem verbal-menos ou, mesmo que verbal-mais, pelo menos não-linear. Atravessamentos não-lineares. Lugar de abertura e possibilidade, único lugar de intensidades, vibrações e outragens. É aí que vejo riqueza, é aí que vejo densidade, é aí que vejo material de vida, é aí que vejo alimento, é aí que vejo sentido. Única coisa a fazer, única coisa possível de fazer, única coisa que parece valer a pena fazer.
[QUE VEM DE DENTRO E LIMPA, QUE VEM DE DENTRO E SUJA, QUE VEM DE DENTRO E LIMPA, QUE VEM DE DENTRO E SUJA, QUE VEM DE DENTRO E LIMPA]
Às tantas dei-me conta de que aquilo que se faz na Transição Interior, para trabalhar subjectividades e tentar mitigar tendências nocivas, é muito parecido com aquilo que se faz na arte, e particularmente nas artes performativas. Estas artes e o trabalho para a Transição são aparentados. Práticas de cuidado de si, práticas de cuidado de nós. Práticas específicas para reinventar maneiras de ser. Ferramentas de trabalho sobre nós, ferramentas de equilíbrios vários, de ecologias várias, pessoais e sociais. Gosto de pensar na arte enquanto Ferramenta de Transição (transitar para fora ostentação e da imposição de poder, por exemplo).
[ENTRE CIMA E BAIXO, DO CHÃO À TESTA, DO TECTO À BOCA, A MÃO NO TUBO DO CENTRO DO CORPO]
Ao invés de accionar incansavelmente procedimentos de censura e de contenção, em nome de grandes princípios morais, melhor conviria promover uma verdadeira ecologia do fantasma, que tivesse como objecto transferências, translações e reconversões das matérias de expressão. (1)
[UM CORPO ATRAVESSADO POR ELECTRICIDADE. CHOQUE ELÉCTRICO]
O que é que faz com que uma pessoa tenha vontade de viver? O que é que estamos a fazer aqui na vida? O que é uma vida bem vivida? O que é que nos faz vibrar? O que é que cria desejo em nós? O que é que produz vitalidade? O que é que devemos lembrar, celebrar, assinalar, nomear?
Há um lugar significativo para o corpo nestas questões, sendo o lugar que providencia a activação dos sentidos e que providencia o pensamento, e que intensifica as relações com tudo o que está à nossa volta. Tudo isto tem a ver com energia, movimento, intensidade e desejo, e isso é o que cria sentido na vida. (2)
Há um lugar significativo para o corpo nestas questões, sendo o lugar que providencia a activação dos sentidos e que providencia o pensamento, e que intensifica as relações com tudo o que está à nossa volta. Tudo isto tem a ver com energia, movimento, intensidade e desejo, e isso é o que cria sentido na vida. (2)
Vera Mantero
(1) Guattari, Felix, As Três Ecologias (1989), tradução Maria Cristina F. Bittencourt, Campinas: Papirus, 2001, disponível em http://escolanomade.org/wp-content/downloads/guattari-as-tres-ecologias.pdf
(2) Mantero, Vera, A body made of bones (science) and blood (art), em Cláudia Galhós (orgs.) There is nothing that is beyond our imagination, Torres Vedras: ArtinSite / Imagine 2020, 2015, pp. 176-177.