Miguel
A origem disto tudo nasce de uma reflexão minha e da necessidade de questionar uma realidade social, cultural e política – a actual – que poderá estar coberta com esse tal véu e que nos impede de ver a “verdadeira” realidade, a essência essa tal busca da sabedoria de que tu falas . Isto faz-me pensar bastante numa questão que me persegue insistentemente e que é esta história do centro e da margem, sendo o centro normalmente visto como o que é visível e a margem como o que é invisível. Obviamente que para mim será exactamente o contrário que interessa, e partindo do pressuposto do tal mito hindu então a realidade seria essa margem e o centro essa espécie de ilusão coberta pelo véu. De qualquer maneira, e visto sob outro prisma, é a margem que sustenta e “centra” o centro e é ela que o define e enquadra. Isto faz-me pensar então que o espectáculo existe porque há uma vivência, uma reflexão, uma pesquisa, uma experimentação, uma preparação “antes”, que permite que o espectáculo aconteça, e um “depois” consequencial que deixa os seus vestígios, as suas marcas, e assim sucessivamente, numa espécie de espiral.
O espectáculo em si será apenas presente, um produto, a matéria que alimenta o sistema e o mercado, sendo assim uma zona intermediária.
Como se pode construir, ver um espectáculo invisível?
Daniel
Esta é uma grande pergunta, é porventura a grande questão da arte contemporânea. Merleau-Ponty dizia que a arte torna o invisível visível, ou seja dá a ver o invisível. Isto encerra um paradoxo, que é o paradoxo da criação artística contemporânea..
Quando dizes quereres voltar-te “para o espectáculo antes”, ou seja para o espectáculo despido de “visibilidade” estás a querer desenvolver um projecto que desvenda o próprio processo de dar a ver? Mas dar a ver o quê, e como? Respondes que haverá que “desimpedir o espaço, desobstruí-lo dos enfeites, das marcas espectaculares. Visualizar tudo o que não esperaríamos ver ...num espectáculo”. Esta pode constituir uma linha dramaturgica muito interessante, uma linha de desnudamento...o que está sob a roupa, o que está sob a pele, o que está sob os músculos, o que está sob os órgãos, o que está sob os ossos, etc? Ou a outro nível, o que está por trás da máquina de cena, o que está por trás dos projectores, o que está sob o tablado, etc?
Miguel
Em termos de dramaturgia, e em relação ao que tu te referes, acho bastante interessante essa ideia de linha de desnudamento, ao que está sob qualquer coisa, sendo neste caso o que me motiva mais de momento esse outro nível, que é o que está por detrás da máquina de cena, dos projectores, do tablado, etc, e essencialmente os bastidores, a tal periferia do espectáculo, que poderá ser a sua parte normalmente escondida, “invisível”. Mas isto levanta-nos outra questão em relação ao papel do criador e à função e tipo de intérpretes necessários para este processo. Se calhar neste momento não me interessa “desnudar” os intérpretes mas sim descarnar o próprio espectáculo, o chão, as cortinas, a pernas, os projectores, o linóleo, e perceber o que está por trás disto tudo. Ou seja, tirar os corpos do centro do espectáculo! Mas, e se no final “disto tudo” só encontrar, e apenas, os intérpretes outra vez? O que é que eu lhes faço? Como é que posso olhar para eles e restituir-lhes a sua identidade?
Como vês isto torna-se tudo muito complexo, e até talvez tenha dito alguns disparates! Seria bom que este processo nos pudesse ajudar a encontrar um rumo para estas questões, se é que é claro para ti também.
Excertos de conversas trocadas por email entre Miguel Pereira e Daniel Tércio, durante o processo criativo no CENTA/Vila Velha de Ródão ( Out./Nov. 2001 )
Notas para um Espectáculo Invisível de Miguel Pereira, 2001
Ficha técnica
Concepção geral
Miguel Pereira
Intérpretes
Miguel Pereira, Nuno Lucas, Tiago Guedes
Consultores artísticos
André Guedes, Daniel Tércio, Antonio Carallo
Produção executiva
O Rumo do Fumo
Co-produção
Teatro Nacional D. Maria II
Espectáculo subsidiado pelo MC/IPAE
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