Todo o século vinte e um é um trinta e um. “Não se vê que sou eu mas é um retrato” é uma ficção teatral e plástica a partir de encontros com portugueses entre os 9 e os 90 anos sobre as suas vidas e as suas noções de comunidade. A base fornecida por este conjunto de entrevistas é alterada, expandida e conectada por um trabalho de escrita de ficção e de encenação que contém simultaneamente o imaginário singular de cada participante e a sua diluição numa visão de conjunto.
De perto, cada indivíduo está sempre entre dois ou vários indivíduos, pertencendo a todos e a nenhum, sem no entanto pertencer-se. De longe, há a escrita que veste e despe personagens que nos vão falando das sedes deste século. Perguntamo-nos o que aconteceria se mais de 30 pessoas que não se conhecem à partida, ficassem presas numa sala e tivessem apenas uma hora para gerir as suas diferenças e encontrar forma de dali saírem. “Não se vê que sou eu mas é um retrato” é feito deste cruzamento caleidoscópico de testemunhos reais, utopias de vida em conjunto, desejos, ideias de comunidade, sedes e regras de mecânica inventada.
Durante o processo de criação da peça descobri como as narrativas – individuais ou colectivas – funcionam como automatismos que acontecem à revelia dos eventos e dos desejos. Mesmo na tentativa de composição mais fragmentária e des-síncrona desenha-se um atlas de sentido. Parece inevitável: tal como nas leis da matemática bastam dois pontos para formar uma linha, bastam dois eventos para edificar o princípio de uma história comum, bastam duas pessoas para formar uma ideia de comunidade. Procurei aceitar esta condição, aplicando à dramaturgia deste trabalho elementos que vejo acontecer no movimento das nuvens, pensando a ideia de comunidade e identidade como algo temporário, em movimento permanente e ininterrupto.
Rita Natálio
Em continuidade com o anterior “Nada do que dissemos até agora teve a ver comigo”, também ele construído a partir de depoimentos, Rita Natálio convida para este novo projecto Luciana Fina que colocará em diálogo o seu trabalho em torno do retrato fílmico.
Quodlibet ens não é 'o ser, qualquer ser',
mas 'o ser que, seja como for, não é indiferente'…
(Giorgio Agamben)
Encontrei as pessoas que contribuíram para o processo de pesquisa desta peça durante as residências de criação, no Fundão e, meses mais tarde, em Lisboa. Cada pessoa foi convidada a preparar-se para um retrato, a repensar a necessidade, a experiência, a ilusão, o tempo de um retrato. Alguns destes retratos acompanham-me num questionamento até ao palco. Memória, desejo e acontecimento, qual desses tempos conjuga o retrato? Fala ele no singular, ou no plural? O sujeito não quer aqui significar uma identidade determinada, pelo nome, pela pertença a um grupo ou classe social, ou pela genérica ausência de pertença, está aqui essencialmente a designar a singular condição de representar-se e ser representado, a conjugar um tempo de que nós, perante a sua representação, fazemos parte. Ele parece, tem ar de, deve ser... um ser 'qualquer', singularidade exposta. No espaço cénico, os retratos de figura inteira convivem sugerindo a inquietação de uma narração, activando a hipótese de uma comunidade, não constituída, mas possível.
Luciana Fina