Talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois é um solo estreado em 1991, criado para o Festival Europália na Bélgica (dedicado nesse ano a Portugal e que incluiu uma larga representação coreográfica portuguesa). Este solo tem um lugar cimeiro no percurso coreográfico de Vera Mantero. Um trabalho que percorreu mais de três décadas e que, singularmente, continua vivo e a ser apresentado. Porquê?
Foi com este solo que a autora encontrou parte da sua identidade em termos de movimento, da sua forma de estar em cena, de instrumentos e elementos que utiliza para criar e actuar: um corpo que não descura os gestos, as mãos, o rosto, as expressões, que as inclui porque sabe que estes elementos fazem absolutamente parte do corpo-gente; que tenta constantemente agarrar aquilo que o atravessa, que tenta expor isso mesmo através das respostas de um corpo vibrátil; um corpo que embate contra o tempo-cadência e brinca com ele(s) como uma criança brinca com berlindes; um corpo que produz por vezes uma quase-fala, em sons que parecem querer ganhar contornos de palavras, em lábios que articulam palavras inaudíveis. Porque aconteceu isto a este corpo?
Escrevia Mantero na folha de sala nessa altura: “A minha relação com a dança gira à volta das seguintes questões: o que é que a dança diz? O que é que eu posso dizer com a dança? O que é que eu estou a dizer quando estou a dançar?”. A capacidade e a incapacidade de a dança DIZER estavam no centro das preocupações criativas da autora à época (... não estarão ainda?). A estratégia de inclusão (nas acções, nos movimentos, nos impulsos) de outros materiais que não os habitualmente utilizados pela dança foi o recurso e a pesquisa que a autora empreendeu para forçar-empurrar-pressionar a dança a DIZER.
Esta peça tem também outra particularidade: foi desde sempre e até hoje uma peça improvisada e foi precisamente o ser improvisada que lhe permitiu ser peça. Ela é o resultado de impossibilidades e dificuldades criativas: antes de ser solo foi tentativa gorada de quarteto e antes de ser improviso foi tentativa gorada de solo coreografado. Perante todas estas dificuldades a autora “... não queria fazer esta peça. Felizmente houve alguém (o Bruno Verbergt, do festival Klapstuk) que me pôs um palco à disposição e me disse para fazer em cima dele exactamente aquilo que precisasse de fazer. Foi o que eu fiz”. A improvisação possibilitou-lhe minúcias, velocidades e liberdades que uma dança coreografada nunca permitiria. O encontro com “Ruby, my dear” de Thelonious Monk, na versão utilizada nesta peça, foi uma ajuda muito importante, que facilitou o movimento a este corpo em dificuldades. De tal maneira que foi (e é) necessário repetir três vezes a sua audição ao longo da peça. E a frase de Beckett em “À espera de Godot”, que dá o título a este solo, explicita ainda mais uma parte dessas dificuldades, ao propor que ela dance primeiro e pense depois; ainda na folha de sala original pode ler- se: “... para se ser metódico é preciso acreditar e eu tenho um problema de falta de crença. A arte, a criação, são das coisas que mais me interessam na vida, mas parece que, de cada vez que me ponho a fazer qualquer coisa nesse campo, deixo imediatamente de acreditar nelas. E depois acabo por deixar de acreditar na própria vida e noutras coisas por aí fora.”
Como já referido acima, um fenómeno algo raro e curioso se deu com este solo: a sua apresentação nunca foi interrompida, ele tem sido apresentado regularmente ao longo dos últimos trinta anos. E se a dita falta de crença começou por produzir um solo algo angustiado e sofrido, essa apresentação contínua e repetida transformou o trabalho e transportou-o dessa zona de dor e angústia para uma zona bem mais luminosa, de humor e gozo, deixando no entanto intactas as suas estruturas e fundações.
Ficha Artística
O Rumo do Fumo
Cronologia
5 Junho 2022, Ciclo "O que a minha dança diz" pela Fundação de Serralves e dedicado a Vera Mantero, Auditório do Museu de Serralves, Fundação de Serralves, Porto/Portugal
19 - 20 Outubro 2018, Festival Contemporâneo de Dança, Centro Cultural do Banco do Brasil, São Paulo/Brasil
24 Fevereiro 2017, ciclo Nova\Velha Dança/Associação Parasita, Teatro Sá da Bandeira, Santarém/Portugal