este trabalho foi elaborado no âmbito do Festival Encontros do Devir, da DeVIR, em torno da desertificação/desumanização da Serra do Caldeirão, no Algarve. uma das condições propostas por esta encomenda era utilizar imagens vídeo, feitas por mim, que teria que ir filmar à Serra. filmei sim. e usei sim. mas também recorri muito às recolhas em filme do Michel Giacometti, sobretudo aquelas que ele fez em torno das canções de trabalho.
toda a peça é povoada de vozes que vêm de longe.
os tradicionais “ferrinhos” são usados para reproduzir o som do silêncio, o som da serra. eu reproduzo algumas das canções trazidas até nós pelo Giacometti, cantando “para” os actuais trabalhadores rurais, retomando tradições perdidas, tentando reactivá-las. e não é só de música que se trata, é também da palavra e da terra; a palavra de um Antonin Artaud em combustão, de um Prévert martelado em jeito de poesia sonora (as suas palavras sobre ruínas combinando magicamente com as imagens das ruínas que encontrei na Serra). o todo acaba por ser um forte olhar sobre a preciosa recolha do Giacometti. e é também um olhar sobre práticas de vida tradicionais e rurais em geral, conhecimentos das culturas orais de norte a sul do país, e não só: também as de outros continentes, que nesta peça são trazidos com Eduardo Viveiros de Castro e a referência aos índios da América do Sul (que miraculosamente todos os espectadores acreditam ser os Serrenhos do Caldeirão...!). com este “retrato alargado” dos Serrenhos do Caldeirão eu falo nesta peça de povos que possuem uma sabedoria que perdemos. uma sabedoria na ligação entre corpo e espírito, entre quotidiano e arte. mas uma sabedoria que podemos (e devemos, para nosso bem) reactivar. toda a minha dança final, com o meu precioso tronco (de cortiça), remete para isso.
[adenda do vídeo 2 da visita à serra:
“mas Miguel [Vieira, da Associação Florestal da Serra do Caldeirão], diz-me lá, para além das barragens para reter a água, o que é que era importante fazer aqui?”
“olha, parece-me importante... (fica a pensar)... ppvvvv (som com os lábios)... que o Estado diga aos proprietários dos terrenos o seguinte: “Meus amigos, ou o vosso terreno começa a produzir alguma coisa ou nós tomamos posse dele”.
(olha para mim em silêncio com ar de quem pergunta se estou a perceber).
“Tás a ver a ideia?”.
“Tou”].
Ficha Artística
Cronologia
28 Junho 2017, Festival Junta #3, Teresina/Brasil
16 - 18 Maio 2017, Rencontres chorégraphiques internationales de Seine-Saint-Denis, Grand studio, Centre National de la Danse, Pantin/França