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Notas para um Espectáculo Invisível

de Miguel Pereira, 2001

Miguel
A origem disto tudo nasce de uma reflexão minha e da necessidade de questionar uma realidade social, cultural e política – a actual – que poderá estar coberta com esse tal véu e que nos impede de ver a “verdadeira” realidade, a essência essa tal busca da sabedoria de que tu falas . Isto faz-me pensar bastante numa questão que me persegue insistentemente e que é esta história do centro e da margem, sendo o centro normalmente visto como o que é visível e a margem como o que é invisível. Obviamente que para mim será exactamente o contrário que interessa, e partindo do pressuposto do tal mito hindu então a realidade seria essa margem e o centro essa espécie de ilusão coberta pelo véu. De qualquer maneira, e visto sob outro prisma, é a margem que sustenta e “centra” o centro e é ela que o define e enquadra. Isto faz-me pensar então que o espectáculo existe porque há uma vivência, uma reflexão, uma pesquisa, uma experimentação, uma preparação “antes”, que permite que o espectáculo aconteça, e um “depois” consequencial que deixa os seus vestígios, as suas marcas, e assim sucessivamente, numa espécie de espiral.
O espectáculo em si será apenas presente, um produto, a matéria que alimenta o sistema e o mercado, sendo assim uma zona intermediária.
Como se pode construir, ver um espectáculo invisível?

Daniel
Esta é uma grande pergunta, é porventura a grande questão da arte contemporânea. Merleau-Ponty dizia que a arte torna o invisível visível, ou seja dá a ver o invisível. Isto encerra um paradoxo, que é o paradoxo da criação artística contemporânea..
Quando dizes quereres voltar-te “para o espectáculo antes”, ou seja para o espectáculo despido de “visibilidade” estás a querer desenvolver um projecto que desvenda o próprio processo de dar a ver? Mas dar a ver o quê, e como? Respondes que haverá que “desimpedir o espaço, desobstruí-lo dos enfeites, das marcas espectaculares. Visualizar tudo o que não esperaríamos ver ...num espectáculo”. Esta pode constituir uma linha dramaturgica muito interessante, uma linha de desnudamento...o que está sob a roupa, o que está sob a pele, o que está sob os músculos, o que está sob os órgãos, o que está sob os ossos, etc? Ou a outro nível, o que está por trás da máquina de cena, o que está por trás dos projectores, o que está sob o tablado, etc?

Miguel
Em termos de dramaturgia, e em relação ao que tu te referes, acho bastante interessante essa ideia de linha de desnudamento, ao que está sob qualquer coisa, sendo neste caso o que me motiva mais de momento esse outro nível, que é o que está por detrás da máquina de cena, dos projectores, do tablado, etc, e essencialmente os bastidores, a tal periferia do espectáculo, que poderá ser a sua parte normalmente escondida, “invisível”. Mas isto levanta-nos outra questão em relação ao papel do criador e à função e tipo de intérpretes necessários para este processo. Se calhar neste momento não me interessa “desnudar” os intérpretes mas sim descarnar o próprio espectáculo, o chão, as cortinas, a pernas, os projectores, o linóleo, e perceber o que está por trás disto tudo. Ou seja, tirar os corpos do centro do espectáculo! Mas, e se no final “disto tudo” só encontrar, e apenas, os intérpretes outra vez? O que é que eu lhes faço? Como é que posso olhar para eles e restituir-lhes a sua identidade?
Como vês isto torna-se tudo muito complexo, e até talvez tenha dito alguns disparates! Seria bom que este processo nos pudesse ajudar a encontrar um rumo para estas questões, se é que é claro para ti também.

Excertos de conversas trocadas por email entre Miguel Pereira e Daniel Tércio, durante o processo criativo no CENTA/Vila Velha de Ródão ( Out./Nov. 2001 )

Ficha Artística

Concepção geral
Miguel Pereira
 
Intérpretes
Miguel Pereira, Nuno Lucas, Tiago Guedes
 
Consultores artísticos
André Guedes, Daniel Tércio, Antonio Carallo
 
Produção executiva
O Rumo do Fumo
 
Co-produção
Teatro Nacional D. Maria II
 
Espectáculo subsidiado pelo MC/IPAE