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Corpo de Baile

de Miguel Pereira, 2005

Comecei por uma visão geral de ilusão óptica e aos poucos fui entrando em zoom e observando os detalhes. A imagem que eu tinha dos corpos na altura, corpos perfeitos, magros, elegantes, graciosos, começou a transformar-se e comecei a notar por entre eles, algumas assimetrias. Onde era suposto ver rigor, precisão, automatismo e leveza nos movimentos vi que, ao observar de perto, todos os corpos tinham as suas peculiaridades. Os mais gordos, os muito magros, aqueles que tinham imperfeições, os que não estavam no ritmo, os que tremiam, braços mais acima, pernas mais abaixo – com o zoom ia podendo observar cada vez mais detalhes - os corpos qu eoscilavam, que tremiam, que se desencontravam por instantes, que se mostravam inseguros, o esforço que faziam. Caras com uma expressão grave, com o pânico e o medo
instalados, por instantes, ao mesmo tempo que alguns sorrisos se esboçavam. Não estavam todos certos como pareceram ilusoriamente no início, como máquinas. Lembro-me mesmo de um pé que não resistia á gravidade. E com tanta observação acabava por ver o palco, o linóleo preto, a caixa preta, os panos pretos, as “pernas”, e até mesmo os projectores que estavam meio escondidos nas bambolinas. Na sala havia um cheiro a perfume, não me lembro exactamente que cheiro era mas associei a algo enaltecido, importante, um cheiro sensual, envolvente, que enchia a sala e o palco. Naquele momento o cheiro fazia parte do espectáculo.
Miguel Pereira

PONTO DE PARTIDA
Em 2003 fui convidado, pela primeira vez, a criar uma peça para uma companhia, neste caso para a “Transitions Dance Company”. Esta companhia está ligada e sediada no Laban Centre em Londres, uma instituição com enorme reputação académica e artística na área da dança. Esta companhia, para além do reconhecimento nacional e internacional, tem um carácter pedagógico muito forte, uma vez que faz parte de uma escola de formação de dança que dá a oportunidade a jovens bailarinos de terem uma primeira experiência profissional, durante um ano, com coreógrafos de diferentes origens e linguagens artísticas, e de apresentar os seus programas noutras instituições ligadas normalmente à aprendizagem e desenvolvimento da dança. Desenvolvi num período de quatro semanas e meia (de 26 de Outubro a 28 de de Novembro) um objecto a que dei o nome de Transitions, com duração de quinze minutos, em homenagem àquela equipa que se disponibilizou, desde o primeiro momento, a colaborar, conhecer e experimentar o meu trabalho criativo, envolvendo os prováveis riscos tanto na sua construção como na própria fruição do objecto em si. Desenvolvi nesta peça questões, conceitos e elementos que tenho vindo a pesquisar e a experimentar em trabalhos meus anteriores, como sejam a reflexão à volta da ideia de espectáculo e a sua repercussão na maneira de pensar e agir das pessoas enquanto seres naturais e culturais, e, pus em prática ideias que pretendo introduzir e aprofundar num novo projecto que irei desenvolver em breve.
O meu ponto de partida foi questionar a essência e a razão de uma disciplina artística como a dança, nos nossos dias, e a necessidade de criar entretenimento, interesse e pensamento a partir do espectáculo.

Interessou-me também a utilização do corpo, virtuoso, estético, sublime, simultaneamente expressivo e maquinal, como matéria central na dança dita clássica ou moderna, por oposição aos ecos e ao impacto que temos desses corpos banalizados numa realidade a que chamamos quotidianos. A utilização da técnica e de um vocabulário codificado e rígido como suporte de reprodução de determinados imaginários colectivos versus a exposição de uma identidade individual, representando a fragilidade, o subjectivo e a falha humanos como dramaturgias do espectáculo.

Foi também fundamental e impulsionador a pesquisa e o estudo que fiz da obra de Rudolph Laban, mentor e fundador desta instituição, que desenvolveu teorias, pensamentos e técnicas de carácter humanista e inovadores para a época, na análise que fez do corpo na sua relação com o espaço, a natureza e a sociedade e da sua transposição para o movimento nas artes cénicas, como no seu interesse pelas qualidades próprias inerentes ao indivíduo e à personalidade no contributo para a criação artística. Questões como a identidade individual e colectiva, objecto, função, automatismo, reprodução, clonagem, criatividade e musicalidade, foram conceitos abordados e explorados em Transitions, que se torna assim num exercício de carácter experimental, performativo-musical, com referências aos grandes coros que constituem os grandes espectáculos de music-hall ou mesmo aos grandes bailados românticos e clássicos que povoaram e povoam o nosso imaginário cultural. Esta pequena peça criada para a Transitions Dance Company, tonou-se a primeira experiência prática de uma investigação intensiva e profunda que tenho vindo a desenvolver para a minha próxima criação.

A PERSPECTIVA DO PALCO
Partindo do lugar simbólico do palco e dos seus signos, que perspectivas me são dadas para reinventar os códigos e as convenções teatrais? Segundo os cânones de interpretação e visibilidade subjacentes à ideia de “dança” e de “companhia”( com os bailarinos solistas, os corpos de baile, a figuração, etc), o ballet explora e define padrões estéticos, técnicos e virtuosos. Pegando nessa linguagem codificada e convencionada, pretende-se repensar a função do espectáculo, e nomeadamente da dança, nos nossos dias. Questões como o papel e a utilização dos intérpretes no próprio espectáculo, as hierarquias, o virtuosismo técnico, a reprodução de um vocabulário rígido e fixo, a possibilidade de uma interpretação pessoal desses mesmos códigos, o conceito de corpo máquina/objecto, a expressão e a emoção, serão o eixo principal de abordagem, subvertendo uma lógica de senso comum no que de mitificador e de redutor isso possa implicar. Construir, partindo deste questionamento, estruturas de composição que possam experimentar e produzir novos modos de percepção e de leitura das linguagens atribuídas à dança, através de novos mecanismos de pensamento, percepção e fruição do espectáculo.


PRÓLOGO
Andar à procura de uma justificação para o meu trabalho. E nessa procura encontrar a própria matéria de trabalho, mais do que a sua solução.

CORPO
Este é um projecto uma vez mais reincidente na temática do corpo, nas suas extensões e suas implicações. O corpo pode ser aqui uma citação, que é utilizado como material. O corpo e as suas representações. Possíveis, utópicas. “Há uma contradição contemporânea que põe o corpo no centro das nossas preocupações: a simultaneidade entre a ilusão da globalização e a erupção de um individualismo intenso e plural, tendo o corpo como nó desses campos.” Voltar a trabalhos anteriores: a procura de uma identidade (“Antonio Miguel”), os objectos que se humanizam e os corpos que se automatizam (“Notas para um espectaculo invisível”). O final de “Data, local”, onde o palco se transforma numa plateia, repleto de cadeiras.

A CADEIRA
A utilização de um objecto emblemático, com conotações profundas no universo das artes performativas, nomeadamente na dança. O objecto no qual o espectador assiste. O seu carácter funcional, utilitário, reproduzível em série. As suas implicações no quotidiano e a sua deslocação para o universo artístico, um suporte ideal para um corpo em constante actividade. “Corpos” ergonómicos que se tornam encaixe de outros corpos.

REVESTIMENTO
O vestuário, a identidade reflectida numa espécie de segunda pele, que “fala” por nós, a um primeiro instante. Superfície. A moda. O caracter dictatorial dos cânones impostos pela publicidade e pelos “media”.
Fardas. A s fardas da dança, o figurino. Três razões que demonstram o interesse pelo vestuário: decoração, pudor, protecção. A pele, revestimento primário. O nú. O corpo privado e o corpo público.

IDENTIDADE
A globalização identitária, novos códigos sociais, novas identidades, trocas identitárias. Frankenstein. Clones. Autómatos. “On comprend que l’identité ne depend pas de la tête, mais des facultés que l’on développe.”

A DANÇA
A dança proporciona o estudo e o questionamento das relações do corpo com o ambiente circundante, as relações íntimas em confronto com o colectivo, a massa vs o indivíduo, a norma e a excepção. A monstruosidade. A estranheza. A imperfeição e também o sublime. Virtuosismo. Técnica. Corpos excepcionais. O risco fantasmático de nos fazer sair dos limites do humano. A dança produz corpos excepcionais.
Os corpos anónimos. O real e os “reality shows”. O banal. Realidade vs ficção. A realidade ficcionada e a ficção real. “Assim, não somente o corpo não é anónimo, como talvez seja a única fonte creativa de identidades, para além dos papeis impostos ou imitados, a mulher sexy, os homens de negócios, tudo o que compõe a geografia de um corpo social estereotipado que utiliza o rosto como um alibi espiritual.”

SWAN LAKE
Entre o adquirido e o desconhecido, explorar novas possibilidades a partir daquilo que faz parte da nossa cultura. Sem dúvida, o ballet clássico seria um bom exemplo, sintomático dessa rede em construção constante que é o social, e que reflecte, por exemplo o tipo de hierarquias a que estamos, ainda hoje, submetidos. O corpo de baile, solistas, primeiro bailarino, “prima ballerina”. Questionar a função do intérprete no espectáculo. A interpretação, a intensidade, a expressão. O corpo máquina. Pegar num clássico do bailado e transformá-lo numa dança de cadeiras. Pôr os intérpretes a manipular as cadeiras que reproduzem os movimentos dos bailarinos de Swan Lake. Uma disrupção criada entre corpos perfeitos, ágeis, expressivos, sem qualquer tipo de falhas, e o “corpo” da cadeira, inerte, que se torna inesperadamente vivo.

EPÍLOGO
Para além de uma pesquisa teórica, inerente ao meu trabalho, e também á função social da arte, é importante conservar uma espécie de delírio que atravesse sempre tudo aquilo que faça. Uma espécie de vómito que reflicta tudo aquilo que me é difícil de digerir à minha volta.

Miguel Pereira

Ficha Artística

Concepção e direcção
Miguel Pereira

Assistência artística
Antonio Tagliarini

Tradução dramaturgica
Rui Catalão

Intérpretes
Antonio Taglarini, Andreas Dyrdal, Cláudio Silva, Mário Afonso, Miguel Pereira, Nuno Lucas, Pedro Nuñez

Assistência de ensaios
Ricardo Cruz

Desenho de Luz
Carlos Ramos e Ricardo Madeira

Sonoplastia
Sérgio Cruz

Colaboradores
Margarida Mestre, Rui Dâmaso

Produção
O Rumo do Fumo

Co-produção
Culturgest; Teatro Viriato

Apoio e residência Artística
CENTA e O Espaço do Tempo

Cronologia

9 Dezembro 2005, Bonnie Bird Theatre, Londres/Reino Unido
18 Setembro 2005, Auditório Municipal de Lagoa/Capital Nacional da Cultura 2005, Faro/Portugal
6 - 7 Julho 2005, Teatro Carlos Alberto, Porto/Portugal
1 - 2 Julho 2005, Teatro Viriato, Viseu/Portugal
Estreia - 23 - 25 Junho 2005, Grande Auditório da Culturgest, Lisboa/Portugal