Quando começámos a pensar nesta criação, e antes de termos iniciado os ensaios, trocámos algumas impressões1 onde tentávamos perceber em que direcção se podia dirigir a nossa vontade de trabalharmos de novo juntos.
Há dez anos atrás tínhamo-nos conhecido e criado uma peça, “Antonio Miguel”, um solo feito a dois, num encontro marcante para nós pessoal e profissionalmente2. Nessa altura, em 2000, tínhamos a energia de quem começa algo pela primeira vez, achávamos mesmo que poderíamos mudar alguma coisa, a dança, o espectáculo, os seus limites, as suas convenções e regras, o mundo talvez. Entretanto muita coisa se passou, no micro no macro plano, encontrámo-nos e desencontrámo-nos, enfim, o mundo não parou de nos surpreender e de nos desiludir.
Agora em 2010, perguntámo-nos se ainda tínhamos essa vontade de mudar alguma coisa, se tínhamos algo realmente importante para dizer através da dança ou do espectáculo, para além deste nosso desejo de nos reencontrarmos. Começámos então a olhar à nossa volta e interessou-nos perceber como estávamos e como estava o mundo. Segundo o calendário oficial, tinha-se passado uma década, entrámos num novo século e num novo milénio. O que é que se tinha passado? Que impressões ficavam deste período3? Durante o processo, e já no estúdio, à medida que íamos falando e experimentando coisas, focávamo-nos na questão do tempo. Ter-nos-íamos transformado nestes dez anos? Teria havido uma evolução ou estaríamos nós sempre a falar da mesma coisa mas de forma diferente? O tempo tinha realmente produzido qualquer coisa em nós, no nosso corpo, na nossa energia, na maneira como olhávamos para a vida e o trabalho. Será que as motivações e os estímulos que temos agora serão suficientes para produzir algo de novo? Afinal a dúvida continua a mesma: quem somos? 4
Antonio e Miguel
1) Excertos de alguns emails que trocámos, o Antonio ainda em Roma e o Miguel em Lisboa:
Ciao Miguel,
Ciao Antonio,
Antonio: Per quanto riguarda il concept del nuovo lavoro, la cosa piu’ interessante per me e’ parlare con te e confrontarmi...
Miguel: Concordo plenamente. Se há coisa que gosto no trabalho (e se calhar na vida também) é de confronto e acho que nós os dois juntos, para além de uma grande empatia que temos um pelo outro, gostamos de nos confrontar. Grrrrrrrrrrrrr lol
A: Sono passati 10 anni... cosa e' cambiato nelle nostre piu' profonde esigenze e pulsioni artistiche/creative?
M: Muita coisa se passou durante esta década. No mundo e em nós, e acho que o ponto de partida do trabalho pode ser isto mesmo. Como estamos hoje e para onde vamos, Antonio e Miguel?
A: Come e dove ci posizioniamo dopo 10 anni? Quali cambiamenti e riflessioni? Cosa sentiamo piu' fragile? Cosa sentiamo piu' forte?
M: Sim sim
A: Come e per chi creare?
M: Porque precisamos de canalizar para algum lado tudo aquilo que temos em combustão dentro de nós
A: Come e per chi mostrare il risultato della propria ricerca?
M: Porque temos um compromisso com o mercado e para isso precisamos de ter um produto para poder ser apresentado não?
A: Condordo pienamente. Sono domande un po generiche , ma in qualche modo andando un po in profondita' dentro di noi, puo' essere interessante risponderci.
M: Às vezes as questões genéricas são as melhores, onde despreocupada e intuitivamente tocamos naquilo que é importante para nós. Por isso...
A: Provo io a rispondere, in maniera sintetica. L'atto creativo. nasce sicuramente da una ossessione personale. Soprattutto artisti che come noi lavorano a partire da se /stessi, dalle proprie personali inquetitudini, dalla propriapersonale biografia.
M: É verdade, é um ponto que temos em comum
A: Sia per me che per te il pubblico e' sempre molto presente. In che modo? Come e' cambiata la nostra riflessione sul pubblico in questi 10 anni?
M: Esta questão para mim continua primordial. Para quê e para quem fazemos o nosso trabalho. Sem um público, alguém que “veja”, o espectáculo não faz sentido.
A: I miei primi tre soli, sono nati da una ricerca molto personale. e anche come tematica il punto di parenza e' stato molto personale, intimo. Naturalmente la scommessa, per me, e' stata quella di partire da me per arrivare ad una comunicazione piu' assoluta, piu' universale che raggiungesse il pubblico. che levantasse questioni, che facesse questionare, pensare.
M: Como sabes, eu desde essa altura em que fizemos o “Antonio Miguel” ando à volta das questões da identidade, a minha e a do outro e acho que em todo o trabalho que desenvolvi até agora isso está sempre presente.
A: Il tempo passa, e a volte quella pura spinta artistica personale, individule, intima...muta/cambia.
M: Os avanços e os recuos de que o Barthes falava lembras-te?
A: Aiutami a ricordare?
M: Falámos muito no Barthes quando criámos o “Antonio Miguel”, eu andava obcecado com os livros dele, e ele diz que nós como sujeitos não somos lineares, não descrevemos apenas uma linha, ascendente ou progressiva, temos avanços e recuos, tropeçamos, mudamos de caminho, etc (isto sou já eu a interpretar o que ele disse)
A: Non sempre abbiamo voglia di parlare di noi stessi, va benissimo. Ma nello stesso tempo dobbiamo sempre metterci in gioco, posizionarci personalmente rispetto a qualsiasi tema che si affronta.
M: Sim, até porque o nosso encontro em 1999 foi uma tentativa de construirmos uma identidade conjunta a partir das nossas identidades individuais e agora queremos falar de nós ou queremos falar do mundo?
A: Direi parlare del mondo attraverso di noi. Che ne pensi?
M: Pois...
A: Proveniamo dalla danza, dal corpo, da una ricerca che questiona il corpo, la presenza, lo spazio, il pubblico. TIRAMOS ESTA FRASE?
M: NÃO, DEIXA ESTAR, afinal de contas é uma verdade, vimos da dança
A: Vi sono una serie di questioni legate al contemporaneo, che ci premono. 10 anni fa quali erano? E oggi? Dopo 10 anni cosa e' accaduto a quelle domande? E oggi quali sono le domande, le questioni che ci premono di piu'?
M: É isso mesmo, temos que apenas olhar para aquilo que eram as necessidades há 10 anos e quais as que continuam a fazer sentido, as que já não fazem e obviamente as novas.
A: E il linguaggio, anche 'il modo' e' messo in crisi , e' messo in questione. 'Il modo' diviene anche contenuto. Forma e contenuto sono la stessa cosa. Entrambi vanno continuamente verificati, giocati, messi in crisi.
M: As formas vão sempre mudando mas a essência é sempre a mesma, não é?
A: E’!! In “Antonio e Miguel” vedo due linee, due pulsioni, due questioni: - l'identita', chi sono? - lo spettacolo.
M: Perfeito!
A: parti fondanti di noi, artisti. Sono Antonio, io? Sono un performer. Só? Avevo dimenticato di mettere ‘?” C’e’ semtre un punto di domanda. Chi sono? Non lo so.
M: E eu como Miguel o que sou? Não sei, não sou nada e parece que sei e sou tudo (esta minha veia pessoana, enfim...)
A: Adesso dopo 10 anni rispetto a queste domande cosa accade? Come ci posizioniamo?
Cosa ci interessa?
M: Acho que só quando começarmos a mergulhar no trabalho, a experimentar, quando nos encontrarmos no estúdio, vamos poder concretizar alguma coisa, até lá resta-nos o diálogo e um projecto de intenções não?
Ti abbraccio forte. Un bacetto a te! Antonio
Muitos beijos e até já. Mais beijos, Miguel
2) Miguel Pereira respondendo às perguntas de David Bernadas da revista “Mouvement”, a propósito da apresentação de “Antonio Miguel” no Théâtre de la Bastille.
O meu trabalho nasce sempre a partir de uma impossibilidade de afirmação. Afirmação no sentido da certeza.
A sociedade empurra-nos sempre para os valores afirmativos: a potência, a força, o poder, a conquista, a harmonia, etc. E o que me interessa é o que está por detrás de tudo isso, como por exemplo a fragilidade, os medos, o ridículo, o monstro que pode estar dentro de nós.
Como vivemos com a incerteza, os nossos limites, o desconhecido e portanto a mortalidade, em confronto com a cultura e a construção que fazemos do mundo? Gosto muito de confrontar o meu trabalho criativo com o ser natural em oposição ao ser cultural. “Antonio Miguel” nasceu a partir destes princípios e também da necessidade ou da importância dos espectáculos nas nossas vidas e nas nossas sociedades. E sobre criação, criador, original (idade) e identidade.
O indivíduo em relação com os outros e a necessidade de um espelho para que nos possamos concretizar.
Na altura (este dueto foi criado em 1999 e a estreia foi em Março de 2000) deveria criar um solo mas sentia-me demasiado só (solo), impotente em ser criativo isoladamente. E perguntava-me se seria possível, então, desenvolver este solo em dois, partilhando com outro alguém as minhas ideias, os meus desejos e as minhas dúvidas. E encontrei, por acaso, Antonio, que estava em Lisboa para dar um curso de dança. Conhecemo-nos e identificámo-nos de tal modo que quisemos trabalhar juntos.Queria questionar também o meu papel como indivíduo no espectáculo, seja como intérprete seja como criador, e qual era a verdadeira necessidade de me afirmar nesse campo.Será que tenho qualquer coisa de original para dizer ou sou um híbrido de várias personagens que absorvo e transformo (a ideia do actor, da representação, etc.)? O que é que encontro no fundo de mim próprio? Qual é a urgência em comunicar? (Como dizia Barthes, no fundo, todos temos necessidade em sermos amados!) Será que isso corresponde às minhas expectativas, do que espero dos outros e do que eles esperam de mim? Tenho um estilo? Que linguagem utilizo?
Decidi retomar a personagem da popstar como paradigma, ícone e mito do espectáculo. A magia, a fantasia, o glamour, a perfeição, a sedução, o poder, uma espécie de ser imortal que está ali para nos iludir e nos fazer esquecer o sofrimento da carne e da alma. Este personagem foi criado a partir de uma performance que fiz em 1999 – mesmo antes de “Antonio Miguel” – com Margarida Mestre, M&M’s, onde o utilizava como veículo de prazer e entretenimento. E desloquei-o para uma zona de reflexão e questionamento que é para mim, também, o espectáculo.
3) Lançámos um desafio pela internet, perguntando a pessoas conhecidas e desconhecidas o que tinha significado para elas esta década. Estes são alguns excertos de alguns dos depoimentos:
“… é exactamente uma imagem, fatal, que para mim sintetiza todo o decénio: é uma imagem famosa, repetida naquele ritmo percussivo com o qual o sistema de comunicação tenta anular a potência real das imagens que difunde, já vista até ao enfastidiamento e nunca vista a fundo, porque até ao fundo não se pode ver. O escritor DeLillo chamou-a simplesmente “O homem que cai”. É a fotografia de um homem que no 11 de Setembro se precipita a pico, numa linha (quase) perfeitamente perpendicular, de uma das torres do comércio mundial. Queda repentina e longa, que ainda não terminou, de todas as ilusões produzidas pelo advento do melhor dos mundos possíveis, um mundo que já não é trágico e onde a democracia e o Mercado deveriam ter emendado todos os conflitos. Através do seu rasto vimos os dez anos onde ressurgiu a guerra, a exclusão, a intolerância e um conflito ideológico – “entre civilizações” – que pensávamos ter deixado para trás de nós.”
Attilio Scarpellini
“… mando-te a impressão que certamente não será só a minha mas a de Louise Bourgeois, que morreu ontem com 100 anos, ou a de Michael Moore e provavelmente a de muitos outros ainda.
O MEDO…O mundo ocidental vive e lucra com o “MEDO”, não é?”
Fabio Pinelli
“Teria sido tão óbvio crescer num mundo estritamente bipolar. Havia muitos sinais. Depois apenas foi necessário um muro cair. A página virada de um século e de um milénio. Em perda de inimigos e de aliados suficientemente identificados, a última década inventou a sua guerra difusa, habitada por novos perigos obscuros. Isto sem nada eliminar dos antigos bem conhecidos do mercado global, liberados de obstaclos contrários. Que grande alegria! Acabaram-se os erros pós-modernos da pura dança dos signos. O que nela havia de precursor, de novo e sedutor, transformou-se em realidade. E perdeu o seu lado atractivo. Vê-se. Como encontrar então o alento emancipador nesta nebulosa generalizada do sentido? Existem classes. Existem lutas. Há oprimidos. Os mesmos de sempre. Então são precisas utopias. De facto tinha-me esquecido: porcaria de década, de vomitar!”
Gérard Mayen
“ (...) Skype, Facebook, Twitter, Buzz, Messenger, Hotmail, Gmail, Yahoo, Lycos, Google, e por aí fora, passaram a fazer parte do nosso dia-a-dia.
Há quem fale do risco de tudo isto vir a reduzir as nossas conversações online a 'monossílabos, regurgitações discursivas e spam'. Para mim, o risco é igual online ou ao vivo. E eu brinco com o falar 'faceboquez'. Isso não me assusta, pelo contrário, sinto que redimencionei a linguagem escrita através do uso das redes sociais. Aprendi a falar on-line quase-quase à mesma rapidez com que falo e sou capaz de de 'tridimencionalizar' a minha presença usando apenas o teclado. Sinto que já domino mais uma língua. E gosto muito disso!
(Consegues sentir o cheiro de uma frase? Ler uma gargalhada espontânea? Ouvir o som de uma lágrima que caiu? Sentir um beijo carinhoso na face? Corrigir erros em tempo real sem apagar? Afinar o tom da tua afirmação?)
Há quem receie que, pela facilidade com que nos relacionamos virtualmente, acabemos por prescindir da presença real. Mas isso parece-me um não problema. A materialidade corpórea é uma condição do humano, mesmo quando este aspira à transcendência. Como poderíamos viver sem os corpos uns dos outros? Como sobreviveríamos sem abraços que encostem coração com coração?
No nosso mundo, nesta década, podemos escolher quando queremos ser virtuais ou reais. Viver nesta década é um privilégio.”
Levina Valentim
“Mudança. Um passo à frente e, por vezes, dois atrás. Uma década que dançou quase sem música.”
Francisca Vidal
“ (...) Mudança. 30 anos. 40 anos.”
Barbara Folchitto
4) "Por natureza somos todos selvagens. Como seres humanos o nosso dever é o de nos tornarmos como os domadores que não só têm os seus animais subjugados como os levam a praticar movimentos contrários à sua natureza bestial"
Tom Nakajima no filme «Tropical Malady» de Apichapong Weerashetakul