Há muitos materiais surgidos no processo de criação da peça O Susto é Um Mundo (2021) que ficaram por explorar e aprofundar, pontas soltas que não se chegaram a agarrar, por falta de tempo ou por não encontrarem o seu lugar no trabalho. Desde 2023 Vera Mantero iniciou um processo de criação de “micro-peças” feitas precisamente a partir da exploração e aprofundamento desses mesmos materiais, juntamente com intérpretes e colaboradores presentes nesse mesmo Susto, primeiro com Teresa Silva e Santiago Tricot em Um pequeno exercício de composição (2023) e agora com Henrique Furtado e João Bento em __ chãocéu |
Na primeira dessas micro-peças, um dos elementos presentes na cenografia d’O Susto foi replicado, um anel de ferro de cerca de 2m de diâmetro, e os dois anéis, juntamente com as duas intérpretes, tornaram-se protagonistas centrais desse “... pequeno exercício” austero e praticamente silencioso de sincronia no tempo e geometria no espaço. Em __ chãocéu | escolheu-se um outro elemento cenográfico vindo da peça O Susto, mas pouco utilizado nesta, e também aqui multiplicado, agora por três: um escadote. Em O Susto, o escadote surge porque se quis, simbolicamente falando, “tocar nos pés dos deuses”. Em __ chãocéu | tentou-se ver como seria isso de facto, como seria tocar nos pés dos deuses e segurar o céu, que está a cair, como todos sabemos. E, assim, os três corpos levitam agora ao alto, obrigando-nos a elevar o olhar. A acção desprende-se do chão, o mundo fica pequeno cá em baixo. Três anjos-pássaros deambulam sobre as nossas cabeças, deixando-nos na inquietação de saber se descerão e nos ajudarão a compreender o tumulto do plano rasante.
Figuras míticas e fantásticas várias vão surgindo (deusas e deuses, gárgulas, guerreiros e guerreiras…), intermediárias entre o cima e o baixo, praticando acções-tarefas-danças-sons, numa sequência de insólitas relações entre opostos. Novamente o espanto, o sonho, sempre o susto – e uma busca material do inconsciente. Se em O Susto as palavras proferidas pareciam materializar-se em jogos com os objectos cénicos, em __ chãocéu | as palavras são já ressonâncias nos próprios corpos-objectos que, com a sua nudez, tentam formar uma outra linguagem nos entalhes de um metal aparentemente imaterial. Em baixo, observamos a agitação das criaturas, o ritmo alucinante, as coisas que, com a sua velocidade multicolorida, chocam umas nas outras, produzindo ruídos que são eles próprios substância, obstáculo.
O mundo continua a espantar, e a assustar, mas agora queremos escutá-lo a partir de uma interioridade que, desacreditada, talvez já não passe pelo humano. Em O Susto dizia-se: “O chão está quieto à minha espera desde que sou gente”. Talvez agora já não seja gente que espera tocar o chão, nem o chão esteja já quieto. Porventura é o céu que quer agora chão, e talvez seja o único a conseguir essa coexistência de opostos, já que nós cá em baixo não a temos conseguido.
Ficha Artística
Textos
Excertos de "Morte e Democracia", ed. Relógio d'Água (2023), de José Gil
Cronologia
14 de Novembro, Centro Cultural de Lagos, no âmbito do Festival Pedra Dura, Lagos
ESTREIA 8 de Novembro, Blackbox Plataforma de Criação Artística de Leiria, Leiria
2025
chãocéu (micro-peça 2)
de Vera Mantero, Henrique Furtado Vieira e João Bento
La Caldera, Barcelona/Espanha
Quinta a sábado às 20h
No âmbito do Festival Dansa Metropolitana
2025
chãocéu (micro-peça 2)
de Vera Mantero, Henrique Furtado Vieira e João Bento
Teatro São Luiz, Sala Mário Viegas, Lisboa
Quarta a sábado às 19h30, domingo às 16h